Por Cristine Kist
Pensou em Jesus, pensou em deserto. Pelo senso comum, a
paisagem onde Cristo viveu é aquela que sempre aparece nos filmes sobre ele:
areia, gente esfomeada, mais areia... Só que não. A região em volta do Mar da
Galileia, onde Jesus passou a maior parte da vida, não tem nada de deserto.
Está mais para uma daquelas paisagens suíças de propaganda de chocolate: um
lago de água doce, com uma vegetação colorida em volta. Tudo emoldurado por
montanhas. Cartão postal.
E o que o lugar tem de bonito, tem de fértil. Há dois mil anos, as vilas que pontuavam os 64 quilômetros de circunferência do lago produziam toneladas de azeite, figos, nozes, tâmaras - itens valiosos num tempo sem iPads, Galaxies ou TVs de Led. Escavações arqueológicas mostram que a cidade onde Jesus se estabeleceu, Cafarnaum, era o centro comercial de onde esses alimentos partiam para o resto da Palestina. A pesca também era industrial. Magdala, a cidade de Maria Madalena, a 10 quilômetros de Cafarnaum, abrigava um centro de processamento de peixes, onde as tilápias do Mar da Galileia eram limpas, conservadas em sal do Mar Morto, e exportadas para outros cantos do Império Romano. O ambiente era de fartura, pelo menos para os padrões da Antiguidade. Tanto que o próprio milagre da multiplicação dos pães e dos peixes não aparece na Bíblia como uma "ação de combate à fome". Mas como um lanche de fim de tarde mesmo. Segundo os evangelhos, uma multidão tinha seguido Jesus até um lugar ermo para ouvi-lo. Estava anoitecendo. Os apóstolos alertaram o mestre de que, no lugar onde estavam, o pessoal não teria onde comprar comida. Então operou-se o milagre. Sem drama.
A ideia de que Jesus pregava num deserto famélico é só a ponta de um iceberg de
mitos que povoam o senso comum quando o assunto é Cristo. Nas próximas páginas
vamos ver o que a história, a arqueologia e a própria Bíblia têm a dizer sobre
os outros.
1. Ele não nasceu em Belém, nem no Natal
O sino que bate nas canções natalinas não é o de Belém. E também não foi no dia
25 de dezembro que ele nasceu. Tudo o que sabemos sobre o nascimento de Jesus
está nos evangelhos de Mateus e Lucas - e são versões bem diferentes. Em
Mateus, José e Maria aparentemente viviam em Belém quando ela deu à luz. No
evangelho de Lucas, eles moravam em Nazaré, e só se deslocaram até Belém porque
Augusto, o imperador romano, decretou que todos os habitantes do império
deveriam ir até a cidade onde nasceram seus ancestrais para participar de um
censo. Como José, segundo a narrativa, era descendente do rei Davi, que nasceu
em Belém, ele e a esposa foram até lá. Evangelhos à parte, hoje é consenso
entre os historiadores de que Jesus nasceu mesmo em Nazaré. "Tanto Mateus
quanto Lucas dizem que Jesus nasceu em Belém com o objetivo de dizer
metaforicamente, simbolicamente, que ele é o `novo rei Davi¿", diz o
teólogo americano John Dominic Crossan, um dos maiores especialistas na
história do cristianismo. Crossan e outros descartam Belém por um motivo: do
ponto de vista dos evangelistas, seria mais simples dizer que ele nasceu e cresceu
em Belém mesmo - e então mudou para o Mar da Galileia, onde começou a pregar.
Mas como os textos se dão ao trabalho de dizer que ele veio de Nazaré, uma
cidade que não tinha nada de especial, o mais provável é que ele tenha nascido
lá mesmo. Mais: o motivo que Lucas dá para José e Maria terem ido a Belém não
existiu. O governo de Augusto é extremamente bem documentado. E não há registro
de censo nenhum. Menos ainda um em que as pessoas teriam que "voltar à
cidade de seus ancestrais".
Outro consenso é o de que Jesus nasceu "antes de Cristo". A fonte aí
é a própria Bíblia. Mateus e Lucas dizem que ele veio ao mundo durante o
reinado de Herodes, o Grande (não confunda com Herodes Antipas, seu filho, o
soberano da Galileia durante a fase adulta de Jesus). Bom, como esse reinado
terminou em 4 a.C., ele não pode ter nascido depois disso. E sobre o dia do
nascimento a Bíblia é clara: não diz nada. "No início, o cristianismo não
tinha uma data exata para o nascimento de Jesus. Então, lugares diferentes
celebravam em datas diferentes", diz o teólogo Irineu Rabuke, da PUCRS. O
dia 25 de dezembro acabou adotado, no século 4, porque nessa data os romanos já
comemoravam uma festa importante, a Natalis Solis Invicti, ou "Nascimento
do Sol Invencível". Era uma comemoração pelo solstício de inverno, o dia
mais curto do ano. É que, depois do solstício, os dias vão ficando cada vez
mais longos. A festa, então, é pela vida, que a partir daí volta a florescer.
Por isso mesmo, o solstício de inverno foi celebrado com festa em boa parte das
culturas humanas, desde sempre. O círculo de pedras de Stonehenge, por exemplo,
já era palco de festas assim 3 mil anos antes de Jesus nascer, por exemplo. Por
esse ponto de vista, dá para dizer que o monumento pré-histórico inglês é, no
fundo, uma enorme árvore de natal.
2. Os três reis magos não eram reis. Nem eram três
Está no evangelho de Mateus (e só nele): "magos do oriente" ficam
sabendo do nascimento de Jesus e seguem uma estrela que os leva até Jerusalém.
Lá eles vão até o palácio real e perguntam a Herodes onde é que vai nascer o
"rei dos judeus". O soberano consulta estudiosos das Escrituras
Sagradas, e informa aos magos que o nascimento deve acontecer na cidade de
Belém. Então pede que eles voltem para confirmar o paradeiro de Jesus. Os
homens mais uma vez seguem a estrela, agora até Belém (a 10 quilômetros de lá).
Então oferecem ouro, incenso e mirra ao recém-nascido. Depois, são alertados em
um sonho que não devem contar a Herodes onde Jesus está, e voltam para casa por
um caminho alternativo. Herodes, que era ele mesmo o "rei dos
judeus", não queria ser destronado, então mandou seus soldados matarem
todos os meninos com menos de dois anos na região. Essa é uma história típica
da mitologia em torno de Jesus - nenhum historiador busca evidências de magos e
estrelas-guias, claro. Acreditar nela ou não é questão de fé. Mesmo assim,
alguns elementos dessa fé distanciaram-se do que está na Bíblia. Por exemplo:
não há menção a "reis". "A tradição popular é que definiu isso,
porque trouxeram presentes caros", diz Irineu Rabuke. O evangelho, aliás,
nem diz que eles eram três: só se sabe que eram mais de um, já que são
mencionados no plural. Os nomes deles também não aparecem. As alcunhas
"Gaspar", "Melquior" e "Baltazar" são de textos
do século 5. O mais provável, enfim, é que esses personagens de Mateus sejam
inspirados em sacerdotes do zoroastrismo, uma religião persa ligada à
astrologia - daí a "estrela de Belém" e o "vindos do
oriente", onde ficava a Pérsia (que hoje se chama "Irã"). Bom,
se eles foram imaginados como persas mesmo, essa história tem algo de inusitado
do ponto de vista geopolítico, como lembra o americano Crossan: "Acho
irônico que, no meu país, nós tenhamos três iranianos nos nossos
presépios".
3. Ele era moreno, baixinho e de cabelo curto
A Bíblia não fala sobre a aparência de Jesus, Isso deu liberdade para que
artistas construíssem a imagem de Cristo de acordo com suas próprias
interpretações. Os do Renascimento, por exemplo, desenhavam Jesus à imagem e
semelhança dos nobres do norte da Itália. E essa foi a imagem que ficou.
Ok. Mas vamos à ciência: esqueletos de judeus do século 1 indicam que a altura
média deles era de mais ou menos 1,55 m. E que a maioria não pesava muito mais
do que 50 quilos. Então o físico de Jesus estaria dentro dessa faixa. E mesmo
se fosse bem alto para a época, com 1,65 m, por exemplo, ainda seria pequeno
para os padrões de hoje. Determinar o rosto é mais difícil. Mas uma equipe de
pesquisadores britânicos liderada por Richard Neave, um especialista em ciência
forense, conseguiu uma aproximação boa. Usando como base três crânios do século
1, eles lançaram mão de softwares de modelagem 3D para determinar qual seria o
formato do nariz, dos olhos, da boca... enfim, do rosto de um adulto típico da
época. O resultado foi uma face parecida com a do retrato que abre esta
reportagem. Não que aquilo seja de fato o rosto de Cristo. Mas que se trata de
uma aproximação cientificamente confiável, se trata.
Quanto à cor da pele, a hipótese mais provável é que fosse morena, como era, e
continua sendo, a da maior parte das pessoas no Oriente Médio. E como seria a
de praticamente qualquer um que passasse a vida toda ao ar livre naquele calor
de lascar. Bom, sobre o cabelo dele quem dá a maior pista é a própria Bíblia. No
livro 1 Coríntios, Paulo diz que "cabelo comprido é uma desonra para o
homem". O maior divulgador do cristianismo no século 1 provavelmente não
diria isso se Jesus tivesse sido notório pela cabeleira. Na verdade, as
primeiras representações conhecidas de Cristo, feitas no século 3, mostram um
Jesus de cabelo curto. E sem barba, até. "A ideia era mostrar que se
tratava de um jovem", diz Chevitarese. A inspiração desses artistas eram
as esculturas de Apolo e Orfeu, deuses gregos também retratados como jovens
imberbes. Por volta do século 5, essa primeira imagem de um Jesus jovial e
imberbe perdeu espaço para uma outra, em que ele está de barba e cabelos longos
e escuros.
Esse Jesus moreno e barbudo surgiu no Império Bizantino e é conhecido como
Cristo Pantocrator ("todo poderoso" em grego). "Os bizantinos
começam a atribuir à figura de Jesus um caráter de invencível. E essa
representação de alguma forma coincidia com as que eles faziam dos próprios
imperadores bizantinos", diz Chevitarese.
Os renascentistas, depois, também fariam um Jesus à imagem e semelhança das
pessoas que conheciam, e que achavam mais bonitas. Daí a pele clara, os cabelo
dourado e os olhos azuis. Nas últimas décadas, porém, artistas (e cineastas)
têm se esforçado para não representar Jesus como um nórdico. Em A Paixão de
Cristo (2004), de Mel Gibson, o protagonista Jim Caviezel chegou a ter os seus
olhos azuis transformados em castanhos. Mas ainda falta um filme realista para
valer nesse quesito.
4. Jesus era só um entre vários profetas
Cristo viveu em um período favorável para o surgimento de profetas. Só no livro
Guerra dos Judeus (do historiador Flávio Josefo, que viveu no século 1) dá para
identificar pelo menos 15 figuras semelhantes a Jesus, que viveram mais ou
menos na mesma época dele. A Bíblia cita outros quatro. Um é João Batista, que
anunciava o fim do mundo aos seus seguidores, e de quem os cristãos herdaram o
ritual do batismo. "Cerca de cem anos depois da morte de João Batista,
seus discípulos ainda diziam que ele era maior que Jesus", diz
Chevitarese. Para o historiador, João Batista era um concorrente de Cristo. Os
dois eram profetas apocalípticos (já que pregavam o fim dos tempos) e viviam na
mesma região. A diferença é que João chegou primeiro. "Ele não se ajoelharia
na frente de Jesus e diria que não é digno de amarrar a sandália dele, como
está nos evangelhos. Pelo contrário", diz. Segundo ele, foi a redação da
Bíblia, evidentemente favorável a Jesus, que transformou Batista num
coadjuvante: "Os textos pró-Jesus é que vão amarrar o Batista à tradição
de Jesus. João Batista é um dos melhores exemplos que nós temos de um candidato
messiânico marcadamente popular". O segundo desses profetas contemporâneos
é Simão, o Feiticeiro. Conforme o livro Atos dos Apóstolos, do Novo Testamento,
Simão é conhecido por "praticar mágica", e quando ouve os apóstolos
falarem sobre Jesus, oferece dinheiro a eles para tentar comprar o dom de Deus
(os apóstolos recusam a oferta, claro). O terceiro desses é Bar-Jesus, que os
apóstolos encontram quando chegam à Grécia e a quem nomeiam como "falso
profeta". E o último é o "egípcio", com quem Paulo é confundido
no templo de Jerusalém. O egípcio era um candidato a Messias que viveu por
volta do ano 40, e prometeu levar os seus seguidores para atravessar o leito do
Jordão, que, ele dizia, se abriria quando eles passassem. Chevitarese conta que
eles sequer tiveram tempo de chegar às margens do rio: "Os romanos, quando
ficaram sabendo disso, mandaram a tropa aniquilar todo mundo. Vai que o rio
abre mesmo?".
5. Mateus, Marcos, Lucas e João não são os autores dos evangelhos
Mateus e João eram apóstolos. Marcos, um discípulo de outro apóstolo (Pedro). E
Lucas era médico de Paulo. Pela tradição cristã, eles são os autores dos quatro
evangelhos do Novo Testamento. Mas isso também é um mito. Ninguém sabe quem
escreveu os livros. A "autoria" de cada um foi atribuída
aleatoriamente pela Igreja bem depois de os textos terem ido para o papiro. O
evangelho de Mateus, por exemplo, foi atribuído a Mateus porque ele dá ênfase
ao aspecto econômico - e Mateus era o apóstolo que tinha sido coletor de
impostos. Já o texto creditado a João é o único dos evangelhos a relatar o
episódio em que Jesus, pouco antes de morrer, pede ao apóstolo João que ele
cuide de Maria. Aí os créditos ficaram com João.
O que se sabe mesmo sobre os autores é que não eram "autores" no
sentido moderno da palavra. Hoje, qualquer um pode ser autor, porque todo mundo
sabe ler e escrever. Há 2 mil anos, não. Saber escrever era o equivalente a
hoje saber engenharia da computação. Do mesmo jeito que as empresas contratam
engenheiros para cuidar de seus mainframes, os antigos contratavam escribas
quando precisavam deixar algo por escrito. Com os evangelhos não foi diferente.
O mais provável é que comunidades cristãs tenham encomendado esses trabalhos -
e ditado aos escribas as histórias que conhecemos hoje. Ditado e entregado
outros textos também, para que eles usassem como fonte.
Dos evangelhos, o primeiro a ser escrito foi aquele que hoje é atribuído a Marcos,
quase 40 anos após a morte de Jesus. Marcos, enfim, saiu por volta do ano 70.
Mateus e Lucas vieram um pouco depois, ente 75 e 80 - até por isso ambos trazem
alguns trechos idênticos aos do manuscrito atribuído a Marcos.
Também há muita coisa igual em Mateus e em Lucas, e que não aparece em Marcos.
Como? A tese é simples: os dois autores teriam usado uma fonte em comum, que
acabou perdida. Os especialistas chamam essa fonte de "Q"
("Q" de quell, que é "fonte em alemão). Sempre que Mateus e
Lucas concordam em alguma história que não está em Marcos, então, ela é
creditada ao suposto livro "Q". Por causa desse entrelaçamento todo,
costumam chamar esses três evangelhos de "sinópticos". Ou seja: os
três têm a "mesma ótica". Contam basicamente a mesma história, cada
um com algum adendo aqui e alguma omissão ali. Já João, o quarto evangelho,
escrito por volta do ano 100, traz uma história diferente. Ali Jesus é mais do
que o "filho de Deus": é o próprio Deus encarnado. E a narrativa
também muda. Em João ele destrói as barracas dos cambistas e vendedores do
Templo de Jerusalém logo no começo da saga, por exemplo. Nos outros, esse ato
está bem no final.
Depois foram surgindo mais e mais "biografias" de Jesus. Para
diminuir a bagunça, logo depois que o imperador Constantino legalizou o
cristianismo, no século 4, a Igreja se organizou para definir quais seriam os
livros que fariam parte da Bíblia Cristã. E bateu o martelo para a formação
atual do Novo Testamento. O critério da Igreja foi usar os textos mais antigos
- os mais confiáveis. Os quatro evangelhos, inclusive, faziam parte da primeira
lista de livros sagrados do cristianismo de que se tem notícia, o Cânon de
Muratori, compilado em 170 d.C. "A Igreja no século 4 apenas reconheceu o
que já eram as suas escrituras por séculos", diz o teólogo Ben
Witherington, da Universidade de St. Andrews, na Escócia.
Os textos sobre Jesus que não entraram para a Bíblia acabaram conhecidos como
evangelhos "apócrifos" ("ocultos", em grego). Existem
dezenas. Um deles, aliás, é aquele descoberto recentemente e que ficou famoso
por dizer que Jesus era casado. Não é bem um "evangelho", mas um
fragmento de papiro do tamanho de um cartão, em que aparece escrito em egípcio:
"Jesus disse a eles: ´Minha esposa (...)`" - o resto está cortado. O
manuscrito é dos anos 300 d.C. Bem mais recente que os evangelhos do Novo
Testamento. O que ele significa? Que alguma comunidade cristã daquela época
acreditava que Jesus era casado. Para a maior parte dos pesquisadores, isso não
basta para mudar a "biografia oficial" de Cristo, como diz André
Chevitarese: "João Batista era celibatário. Paulo era celibatário. Jesus é
um desses casos".
6. Judas pode não ter sido um traidor
Judas, um dia, foi nome. Hoje, virou adjetivo, sinônimo de ausência de caráter.
Mas Judas Iscariotes, que teria entregue Jesus aos romanos em troca de 30
moedas de prata, pode ser um injustiçado. Essa história aparece nos quatro
evangelhos - com uma ou outra variação. Para alguns estudiosos, porém, ela é
uma farsa. A maior evidência estaria nos textos de Paulo, os mais antigos entre
os do Novo Testamento, escritos por volta do ano 50 d.C. Numa passagem na
Primeira Epístola aos Coríntios Paulo diz que, depois de ressuscitar, Jesus
apareceu para os 12 apóstolos, e não para 11: "Ele foi sepultado e, no
terceiro dia, foi ressuscitado, como está escrito nas Escrituras; e apareceu a
Pedro e depois aos 12 apóstolos" (Coríntios, 15:5). Ou seja, Judas estaria
lá. Não teria se matado após a famosa traição, como dizem os evangelhos. Essa
epístola foi escrita pelo menos dez anos antes de Marcos, o primeiro dos
quatro.
Outro documento que defende o suposto traidor é o Evangelho apócrifo que ficou
conhecido como "Evangelho de Judas". Uma cópia desse manuscrito foi
revelada em 2006. Pesquisadores acreditam que o texto foi escrito originalmente
por volta do século 2, já que ele foi mencionado em uma carta escrita pelo
bispo Irineu de Lyon em 178 d.C. Segundo o texto, Judas teria apenas acatado um
pedido de Jesus ao entregá-lo para as autoridades romanas. Nessa versão,
Iscariotes era o apóstolo mais próximo do mestre - daí o pedido ter sido feito
a ele.
Mesmo se levarmos em conta só os evangelhos canônicos, alguns pesquisadores
acham pouco verossímeis as passagens que incriminam Judas. É o caso de John
Dominic Crossan: "Para ser sincero, eu vou e volto com essa questão. Mesmo
quando respondo afirmativamente [que Judas de fato traiu Jesus], penso nisso
como remotamente possível", diz ele. Durante a sua última semana de vida,
Jesus era protegido pela presença da multidão durante o dia ("Procuravam
então prendê-lo, mas temeram a multidão", Marcos, 28:12), e se protegia ao
sair de Jerusalém e ir para Betânia, onde estava hospedado, durante a noite. Na
opinião de Crossan, as autoridades romanas não precisariam da ajuda de Judas
para encontrar Jesus: "Certamente as autoridades teriam descoberto por si
próprias o lugar exato para interceptar Jesus. Então, Judas era mesmo
necessário? Essa é minha maior objeção com a figura histórica de Judas como
traidor". Por esse ponto de vista, o episódio da traição de Judas teria
sido criado para facilitar a conversão dos romanos ao cristianismo. Na época,
parte da população do império já começava a se converter, e não ficaria bem se
a maior parte da responsabilidade pela morte de Jesus recaísse justamente sobre
um romano, Pôncio Pilatos. É o que Chevitarese defende: "Pessoas vindas do
ambiente politeísta, principalmente das elites romanas, já estavam se
convertendo ao cristianismo por volta de 70 d.C. Por isso, os evangelhos fazem
Pilatos lavar as mãos".
7. O Reino dos Céus era na Terra
Todo ano, antes de avisar a Jesus Cristo que ele está aqui, Roberto Carlos olha
para o céu e vê uma nuvem branca que vai passando. O céu virou sinônimo de
paraíso, é de lá que Deus observa os nossos movimentos e é pra lá que vai quem
já morreu. Mas o jovem Jesus, quando tentava convencer seus ouvintes a se
comportarem de maneira justa, não dizia exatamente isso. O Reino de Deus (ou
Reino dos Céus) que Jesus pregava iria acontecer aqui na Terra mesmo.
Os próprios evangelhos deixam isso claro. Em uma conversa com os discípulos
pouco antes de morrer, Jesus diz que alguns deles estarão vivos para ver o
reino de Deus chegar: "Dos que aqui estão, alguns há que de modo nenhum
provarão a morte até que vejam o Reino de Deus já chegando com poder"
(Marcos, 9:1). Em outro momento, Jesus chega a afirmar que o Reino de Deus já
chegou: "Ora, depois que João foi entregue, veio Jesus para a Galileia
pregando o evangelho de Deus; e dizendo: O tempo está cumprido, e é chegado o
reino de Deus. Arrependei-vos, e crede no evangelho" (Marcos, 1:15).
Os discípulos, portanto, acreditavam que o Reino de Deus seria instaurado
imediatamente. "No tempo de Jesus, era muito forte a esperança de que se
fosse fazer um reino nos moldes do Rei Davi, do Rei Salomão. Quando Jesus
falava em `reino¿, as pessoas achavam que só podia ser um reino desse
tipo", diz Irineu Rabuske. Mas Jesus era um profeta apocalíptico, e o que
ele defendia é que Deus faria uma intervenção em breve e daria início a um
reino de paz e justiça.
É verdade que também existem na Bíblia diversas passagens em que Jesus fala
sobre um pós-morte. Uma delas está em Lucas. É sobre um homem rico e um mendigo
que costumava pedir-lhe esmolas. Depois de morrer, o rico vai para uma espécie
de inferno, onde "atormenta na chama". E o mendigo é consolado por
Abraão. Cristo é mais claro ainda no evangelho de João. Ele diz a Pilatos que
"seu reino não é deste mundo".
Só que Lucas e João são textos mais recentes que Marcos. E para boa parte dos
pesquisadores, é por isso mesmo que eles dão ênfase à ideia de um Reino do Céu
no "céu".
"Essas referências foram sendo acrescentadas conforme o início do reino
não ocorria", diz o arqueólogo e especialista em cristianismo Pedro Paulo
Funari, da Unicamp. Ou seja: chegou um momento em que os cristãos tiveram que
lidar com o fato de que o reino de Deus talvez não estivesse tão próximo assim.
A partir daí, começou um processo de reinterpretação. A pregação de Jesus, de
que os bons seriam recompensados e os maus punidos num julgamento que marcaria
o fim de uma era no mundo, foi sendo alterada. E o julgamento passou a
acontecer no final da vida de cada um. Faz todo o sentido: do ponto de vista
argumentativo, é uma versão mais sofisticada. Só quem já morreu pode
contestá-la.
PARA SABER MAIS
Jesus Histórico. Uma Brevíssima Introdução
André Chevitarese e Pedro Paulo Funari, Kline, 2012
Quem Jesus Foi? Quem Jesus não foi?
Bart Ehrman, Record, 2011
Fonte: http://super.abril.com.br/religiao/jesus-verdade-mito-730298.shtml
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